7.15.2006

O mundo das lembranças

O mundo nunca é pequeno para lembranças – Pensou ela de repente. Na verdade, a lembrança deve ter um mundo à parte. Caixinhas pequenas devem se dividir em cidades, estados, países e até continente. O continente da família, o continente dos namorados, o continente dos amigos, dos amores esquecidos. Dentro deles devem-se achar países. O país da alegria, da tristeza, das surpresas, das decepções. E como todos os países, eles possuem estados. O estado de ápice das alegrias, de ápice das tristezas, de sonhos, depressões. E daí se tem a cidade, cidade de cada um que nós lembramos, cada um tem uma história onde os cidadãos habitam. Cidadãos seriam as caixinhas. Cada coisinha, cada texto, cada miúdo importante trocado, dito, exposto fica guardadinho lá, nas caixinhas. Alguns cidadãos viajam, se cruza com outros, em outros estados, até países e continentes. Alguns cidadãos com o tempo morrem, outros têm problema logo na infância, deixam o mundo rapidinho. Alguns teimam em morrer, vivem anos doentes, ranzinzos, mas não querem partir de maneira alguma.

A nossa vida sempre fica entrelaçada pelas pessoas, elas se cruzam, se conhecem, se gostam ou não. E cada um vai deixando um pedacinho importante dentro de você. Gosto de pensar nas minhas lembranças assim, um mundo, um mundo que outras pessoas construíram pra mim. Gosto de lembrar que tive momentos de felicidade intensa e de tristeza intensa. Gosto de pensar na ‘minha infância querida, na aurora da minha vida’, as brincadeiras sem fim, risos sem fim. Quando o mundo era mais descomplicado e eu não me preocupava em vestir o que minha mãe dizia que era lindo. Quando eu achava que o dinheiro podia ser fabricado por qualquer um, até pintado, era apenas papel. Quando eu desenhava o sol no chão porque estava chovendo, dessa forma ele me veria lá embaixo chamando por ele e apareceria. Quando eu desenhava com qualquer coisa quadrados no chão e brincava o dia inteiro, porque pular amarelinha era uma brincadeira com mil opções, e os quadrados sempre eram grandes, separados, difíceis. Gosto de lembrar das brincadeiras e brigas com minhas irmãs, de como cada uma tinha seu jeito e seus porquês, cada um menos entendido do que o outro. De como implicar com elas era simplesmente gostoso. Gosto de lembrar das bonecas, eu sempre as arrumava, mas nunca chegava a brincar, enjoava da brincadeira antes do fim.

Mas então eu começo a lembrar que deixei a infância e as lembranças já não são tão doces. Começo a lembrar que já via maldade nos meninos ao puxarem meu short no meio do colégio pra ver a calcinha e me sentia envergonhada, chateada. Lembro de começar a querer as coisas com o meu gosto, cada vez melhores e dos ‘não’ que recebia dos meus pais e suas represarias porque o mundo não era tão simples quanto eu pensava. E aí de tanto ouvir eu começo a lembrar que realmente ele se complicou. Eu comecei a ter meu primeiro amor, minha primeira rejeição, minha primeira briga com palavras feias e puxões de cabelo. As brigas com xingamentos a minha mãe ou ao meu pai e a raiva que crescia dentro de mim quando isso acontecia, a menina doce se transformava na pior pessoa do mundo e queria apenas acabar com quem levantara pra dizer uma asneira daquelas. E lembro que comecei a ver que os homens podem gostar de homens, e, mulheres de mulheres e, às vezes, dos dois. E aí comecei a ver pessoas enchendo a cara, pessoas se drogando e a alegria, ou tristeza, momentânea que aquilo causava. E comecei a ver as pessoas brigando por coisas tão bestas como time, ou porque o verde era azul, mas deveria ser rosa. O mundo realmente complicou. E quando ele complicou de uma maneira impossível de descrever mesmo recorrendo a todas as lembranças, eu lembro que simplesmente me tornei mulher. Decepções com ex-namorados, alegrias intensas também. Brigas e mais brigas com os pais porque eles estavam certos, mas como todo filho teimava em achar que eles estavam errados. E o meu mundo construído por pequenas lembranças de cada coisa que passou na minha vida vai se fechando em caixinhas, porque com o tempo cada caixinha vai ficando quietinha e só é aberta se por acaso, eu reencontrar com aquele tipo de lembrança. Com o tempo a importância delas vai desaparecendo, vão surgindo outras mais importantes. E assim acontecem com os nossos sentimentos, eles vão dando lugar para outros mais importantes. E assim com as pessoas, vão dando lugar para outras mais presentes. E aí eu entendo porque as lembranças estão sempre tão cheias de sentimentos pelas pessoas que construíram elas.

Obrigada pelo mundo tão complexo e perfeito que me faz lembrar do ontem pra construir o amanhã – disse ela. E esperou para ver com mais alguns anos, quais caixinhas nasceriam em seu mundo, quantas se cruzariam com as mais esquecidas, e quais maravilhosas caixinhas viraram as mais feias de sua vida algum dia.

Um comentário:

Lu disse...

Amiga, tas escrevendo tão lindo!
To orgulhosa :DDDD
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